Uma história do café
O Grande Incêndio que consumiu Londres em 1666 destruiu um terço da trama urbana, constituída de intermináveis vielas e becos enlameados que vinham desde os tempos medievais. Londres foi recriada quase inteiramente, transformando-se, a partir de então, na mais ordenada cidade da Europa. As casas e lojas que substituíram as que tinham sido arrasadas pelo fogo, refletiam agora as expectativas sociais de uma nova era, que se traduziam na regularidade das ruas que chegavam à novas praças, mercados e espaços abertos, na origem dos famosos parques ingleses. Pelo ano de 1674, a população de Londres havia atingido a cifra de 500.000 pessoas.
Uma cultura que dava importância à imprensa e aos debates começava a se formar, dando origem ao que hoje se chama comumente de opinião pública. É nesse ambiente que uma rua se tornou dominante: Grub Street, com a sua multidão de jornalistas, editores, hack writers, panfletistas, versejadores de um único verso ou poetas das mais amplas inspirações e ideais, mas todos irmanados sob o mesmo tom do inconformismo. Foi ali que a casa do café (coffee-house) se tornou o local preferido para os encontros entre os escritores e panfletistas.
A notícia sobre o estabelecimento da primeira English Coffee-House data de 1650, em Oxford. A localização foi feliz por encontrar a combinação estimulante de uma população mentalmente evoluída e disposta de antemão ao experimentalismo de todas as novidades. O café se chamava Angel e os demais estabelecimentos que logo brotaram na cidade de universitários, ficaram conhecidos pela denominação de “penny universities”. O termo surgiu pela taxa de um penny cobrado à entrada, o que dá bem idéia do aspecto “democrático” desses locais. Qualquer um com um tostão no bolso e que se apresentasse decentemente vestido, tinha direito a sentar e beber a sua xícara de café na companhia dos outros. Podia tranquilamente fumar o seu charuto ou o cachimbo, escutar os debates, dar uma olhada nos panfletos e nos jornais, emitir uma opinião sem temor de ser censurado, ficando perfeitamente inteirado das últimas fofocas do dia. Os cafés de Oxford consolidaram um certo “tom” para os cafés ingleses, diferindo-os, por exemplo, das tavernas e cervejarias.
A primeira cafeteria londrina foi estabelecida em 1652, por um certo Pasqua Rosee, nativo de Smyrna, Turquia, onde na juventude aprendera a preparar a bebida. Foi um sucesso total e logo os cafés se multiplicaram, tornando-se o centro da vida social londrina. Este pequeno trecho escrito pelo historiador Thomas Macauley, dá idéia perfeita da nova febre que varreu a cidade:
"Foreigners remarked that the coffee-house was that which especially distinguished London from all other cities, that the coffee-house was the Londoner's home, and that those who wished to find a gentleman commonly asked, not whether he lived in Fleet Street or Chancery Lane, but whether he frequented the Grecian or the Rainbow." |
Naquele momento em que o jornalismo como o conhecemos dava os primeiros passos, quando o sistema postal era desorganizado e irregular, as coffee-houses se tornaram um centro de disseminação de notícias muito importantes. Runners (como eram denominados os divulgadores de notícias), iam e vinham continuamente reportando os eventos diários, como o resultado de uma batalha ou a cotação das bolsas em outras capitais européias... Boletins anunciando leilões e vendas, panfletos com os dias e os horários das partidas e chegadas de barcos, cobriam as paredes, dando ao local a imagem de algo próximo de um centro de negócios, pois muitos empresários, banqueiros e comerciantes dirigiam seus negócios das mesas do café favorito.
Naturalmente elevado ao status de referência na vida cotidiana dos londrinenses, algumas regras foram impostas aos frequentadores das coffe-houses, para evitar que o caos pudesse se interpor à perfeita, organizada e pacífica convivência dos apreciadores de café.
"The Rules And Orders Of The Coffee-House.
"Enter Sirs, freely, But first, if you please, Peruse our Civil-orders, which are these.
"First, Gentry, Tradesmen, all are welcome hither, And may, without Affront, sit down Together: Pre-eminence of Place, none here should Mind, But take the next fit Seat that he can find: Nor need any, if Finer Persons come, Rise up for to assigne to them his Room; To limit Men's Expence, we think not fair, But let him forfeit Twelve pence that shall Swear; He that shall any Quarrel here begin, Shall give each Man a Dish t' Atone the Sin; And so shall he, whose Complements extend So far to drink in Coffee to his Friend; Let Noise of loud Disputes be quite forborn, No Maudlin Lovers here in Corners Mourn: But all be Brisk, and Talk, but not too much; On Sacred things, Let none presume to touch, Nor Profane Scripture, or sawcily wrong Affairs of State with an Irreverent Tongue: Let mirth be Innocent, aud each Man see, That all his Jests without Reflection be;
A primeira regra era muito clara: todos devem sentar juntos, em qualquer lugar, independente da posição social, sem proeminência ou sem ceder o lugar a alguém “mais fino” que chegasse. As regras, depois de discorrer sobre todas as possíveis situações, inclusive brigas e disputas e a forma de as reparar, terminavam por não admitir discussões irreverentes sobre temas sacros ou de Estado. Além disso, jogos de cartas, dados ou apostas não eram apreciadas, tanto quanto qualquer outro jogo de azar. Choramingos amorosos tampouco eram apreciados, ao contrário se desejava que os clientes fossem conversadores e animados, mas não tanto.
Uma ilustração da época mostra cinco pessoas ao redor de uma mesa, sendo que uma delas esta fumando, onde podemos observar que se distinguem pelas indumentárias, traduzindo os diversos níveis sociais dos convivas, enquanto o serviçal se aproxima trazendo uma xícara de café. Esta imagem resume a convivência desejável entre os frequentadores de uma coffe-house inglesa.
Durante a epidemia de peste bubônica descrita por Daniel Defoe no notável A Journal of the Plague Year e depois, durante o incêndio que se seguiu, a frequência deve ter diminuído naturalmente pelo número de mortos que aqueles acontecimentos produziram, mas tão logo a epidemia se extinguiu e o fogo não mais prosperou, os cafés recobraram o antigo padrão de popularidade, ao ponto em que os jornais e a correspondência passaram a ser entregues diretamente aos destinatários nos seus cafés.
Tanta popularidade deu origem a alguma oposição e é nesse contexto que vemos aparecer um panfleto satírico, anônimo, em nome das indignadas senhoras londrinas contra as cafeterias, onde os seus maridos passavam a maior parte do tempo: The Women´s Petition Against Coffe, foi publicada no ano de 1674.
A petição recriminava o hábito de beber tanto café, pois...
The occasion of wich Insufferable Disaster, after a serious Enquiry, and Discussions of the Point by the Learned of the Faculty, we can Attribute to nothing more than the Excessive uses of that Newfangled, Abominable, Heathenish Liquaor called COFFEE, which Riffling Nature of her Choicest Treasures, and Drying up the Radical Moisture, has so Eunuched our Husbands, and Crippled our more kind Gallants, that they are bocome as Impotent, as Age and as unfruithful as those Desarts whence that unhappy Berry is said to be brought.
(Por ocasião desse insuportável desastre, depois de sérios requerimentos e discussões com instruídos sábios, nós devemos atribuir a nada menos do que ao uso excessivo dessa abominável bebida dos gentios chamada café, cuja mistura das suas qualidades e a secagem dessa mistura tem emasculado nossos maridos e inutilizado aos nossos melhores varões, tendo eles se tornado impotentes como velhos e tão infrutíferos quanto os desertos de onde as desventuradas bagas foram trazidas.)
...to our unspeakable Grief, we find of late a very sensible Decay of that true Old English Vigour; our Gallants being every way so Frenchified, that they are become mere Cock-sparrows, fluttering things that come on Sa sa, with a world of Fury but are not able to stand to it, and in the very first Charge fall down flat before us…
(... para nossa indescritível aflição, encontramos ultimamente uma queda sensível naquele velho vigor inglês; nossos bravos estão ficando de tantas maneiras tão afrancesados que estão se tornando simples galinhos, barulhentos por fora, mas sem poder suportar firmes a primeira carga e caindo redondo diante de nós...)
A petição inteira pode ser lida aqui, se houver quem deseje se aventurar no inglês elizabetano em que foi redigida tamanha aflição.
O que facilmente deduzimos é que as senhoras estavam furiosas com seus maridos, por passarem eles a maior parte do dia nos cafés, descuidando dos deveres e prazeres pertinentes à toda boa relação conjugal.
Apareceu uma resposta imediata: “The Men´s Answer to the Women´s Petition Against Coffee”, onde eles negavam com veemência “serem menos ativos nos esportes de Vênus”.
E concluia:
“Cease then for the Future your Clamours against
our civil Follies. Alas! alas! Dear Hearts, the Coffee
house is the Citizens Academy, where he learns more
Wit than ever his Grannum taught him(...)”
our civil Follies. Alas! alas! Dear Hearts, the Coffee
house is the Citizens Academy, where he learns more
Wit than ever his Grannum taught him(...)”
Ora, lembrar das coffee-houses como verdadeiras “academias do saber”, significa dizer que não era incomum um encontro com Sir Isaac Newton numa das mesas do Grecian, assim como outros membros da Royal Society, como o Professor Halley, o grande astrônomo. Ao mesmo tempo, Hooke, cientista, matemático, astrônomo, frequentava o Jonathan's...
Não apenas encontros pessoais, mas também leituras eram comuns nas coffee-houses. Richard Steele, escritor e jornalista famoso, pôs um anúncio no Button's Coffee House:
Beginning January 11, 1713-14, a course of philosophical lectures on mechanics, hydrostatics, pneumatics, optics, ... . This course of experiments is to be performed by Mr William Whiston and Francis Hauksbee ...
Nem todos os cafés londrinos eram, entretanto, dedicados ao comércio, à política ou ao conhecimento. Em muitos deles as únicas atividades eram o prazer e o entretenimento, antecessores diretos dos primeiro clubes, onde o jogo de cartas dominava como uma epidemia entre as classes ociosas.
O ocaso do café londrino acontece a partir do século XVIII, depois que a British East India Company começou a importar uma outra bebida exótica – o chá. A novidade se definiu rapidamente como um hábito inalienável da vida diária e por volta de 1750, o chá se converterea na bebida favorita das classes populares inglesas. Depois da introdução do chá, a essência da coffee-house londrina se perdeu para sempre e nunca mais foi recuperada. As iradas senhoras inglesas finalmente podiam tomar sossegadas o café da manhã, pois àquela hora seus maridos ainda estavam dentro de casa.
2 comentários:
Guido adorei!!!! muito bom texto e pesquisa! Obrigada pela contribuição! bjs
Pois garanto a voces que foi um prazer enorme tê-la escrito. Pena que não estive todo o tempo numa coffee-house daquelas...
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